Na beira do precipício

Silvério Vale • 28 de dezembro de 2021

Homem parado na beira de um precipício
Crédito:Leio McLaren

“Na beira de um precipício, só há uma maneira de seguir adiante: dar um passo atrás.” G.K. Chesterton

Desde o início da minha carreira, já participei de muitos projetos complexos e vários deles passaram por momentos de crise. O que diferenciou os que conseguiram superar e seguir em frente dos que se afogaram foi a capacidade de enxergar o precipício e dar um passo atrás.

Enxergando o precipício

Não é fácil alcançar um estado de boa comunicação nas equipes e organizações, mas é fundamental para que boas decisões sejam tomadas. Afinal, para que você possa evitar a queda, primeiro você deve saber que o precipício está lá.

Porém, em algumas empresas, parece ter-se instalado uma cultura do medo, onde os colaboradores não têm abertura para se comunicar com seus superiores. Veja bem, não estou criticando a hierarquia em si, mas a relação vertical pouco saudável que existe em algumas organizações.

Pode até ser que determinadas circunstâncias exijam maior formalidade, mas, se chegar ao ponto onde informações importantes são ocultadas por medo das possíveis consequências, isso significa que o ambiente se tornou insalubre e perigoso. Insalubre pois os colaboradores trabalham em constante inquietação, pensando que qualquer imprevisto pode resultar em demissão ou correção severa. Perigoso pois, para não serem os mensageiros de notícias ruins, os mesmos colaboradores evitam comunicar assuntos delicados.

Quando, em momentos de crise, a primeira atitude dos membros do time é buscar culpados e tentar se desvincular da responsabilidade, é sinal de que essa cultura já alcançou um nível avançado. Ação imediata deve ser tomada para reverter o cenário. Afinal, a equipe está no mesmo barco e, se ele afunda, todos saem perdendo de alguma forma.

Conselho aos desenvolvedores e líderes técnicos

Sempre exponha a verdade aos interessados. Pode ser que, em alguns ambientes, realmente haja algum tipo de consequência negativa, mas, o que observo com mais frequência é justamente o oposto: os stakeholders ficam gratos pela sinceridade e passam a valorizar mais aquele colaborador (mesmo que, num primeiro momento de surpresa, não o demonstrem).

Conselhos aos gestores, POs e stakeholders

Encoraje ao máximo uma cultura de comunicação aberta e nunca penalize um colaborador injustamente, só por ter comunicado uma situação que foge de seu controle, ou por ter cometido algum pequeno deslize. Se fizer isso, haverá grandes chances de que, da próxima vez, aquele colaborador tente ocultar o ocorrido de você.

E é aí que mora o perigo: As pessoas que poderiam tomar a decisão de dar o passo atrás estão desinformadas, pensam que tudo está bem, não enxergam o precipício antes que seja tarde demais.

Também deve-se evitar ser inflexível e exigir o infactível. Não importa que a entrega tenha sido prometida e anunciada. Isso não muda a situação concreta - a crise ainda está lá. Em algumas situações, pressionar a equipe os faz trabalhar em ritmo acelerado e entregar dentro do prazo, mas os efeitos colaterais costumam ser terríveis: bugs, baixa qualidade, equipes insatisfeitas e códigos entulhados, frágeis e remendados.

Porém, na maior parte das vezes, ser inflexível e não encarar a crise significa simplesmente cair no precipício às cegas.

Incentivando a comunicação

Existem incontáveis formas de incentivar a comunicação nos times, mas compartilho uma que pode ser útil para reverter esse tipo de situação a curto prazo: realizar ritos onde você dá a oportunidade a cada colaborador de se expressar. Mas não basta criar um quadro e dizer para todos escreverem post-its (ou seus equivalentes digitais). Você deve chamar, um a um, pelo nome e dizer, por exemplo: “Por que você acha que estamos tão atrasados? Agora me diga duas coisas que você acredita que podemos fazer para melhorar a situação.”

É impressionante o impacto desse tipo de incentivo. Você acaba levantando informações e ideias que nunca teriam sido escritas em um post-it ou expressas naturalmente. Ao mesmo tempo, você mostra ao colaborador que ele pode se expressar sem sofrer retaliações.

Obviamente, as críticas e sugestões devem ser ouvidas, anotadas e discutidas serenamente. Se os comentários forem recebidos de mau grado ou de forma impaciente, a ação terá o efeito oposto: o time ficará ainda mais inibido.

Tomando a decisão

Uma boa comunicação é o primeiro passo. O segundo é analisar as informações e decidir com sensatez e coragem.

Já vi situações onde membros do time tentaram escalar cenários de crise diversas vezes e foram frustrados pelos superiores que, de maneira mais ou menos direta, varreram a sujeira para debaixo do tapete. Algumas vezes, argumentaram que nada podia ser feito. Outras vezes, prometeram que muito seria feito, mas acabaram não fazendo nada. De qualquer forma, apenas adiaram as decisões difíceis para quando a crise se tornara ainda maior e as opções mais limitadas.

Sobriedade e coragem

Para encontrar uma solução, os fatos conhecidos devem ser analisados e as opções consideradas com serenidade. Pode ser que não haja caminho perfeito, mas as vantagens e desvantagens devem ser colocadas na balança e uma escolha deve ser tomada. Talvez, a escolha seja adiar a decisão e observar um pouco mais. Neste caso, é prudente marcar check points para monitorar o desenrolar da situação.

Mas, cuidado! Muitas vezes, o medo das consequências faz com que a decisão seja adiada por tempo demais. Frequentemente, ele vem disfarçado de wishful thinking (pensamento positivo, ilusório). Não caia nessa! Analise os fatos e opções com sobriedade e encontre a coragem para tomar a decisão que parecer mais correta.

(Quase) Sempre há uma saída

Basta a equipe informar um pequeno atraso que aparecem arautos do apocalipse anunciando o fim do mundo. Já presenciou essa cena? Eu já. Na maior parte das vezes, todo o espetáculo gira em torno de evitar uma indisposição com um superior ou com alguns clientes.

Muitas crises podem ser solucionadas ou mitigadas quando o time decide abrir mão de uma funcionalidade secundária ou resolve pedir um adiamento de prazo. Isso agrada a todos? Claro que não! Mas não é esse o objetivo. Líderes maduros devem estar preparados para se indispor se isso for a coisa certa a se fazer.

Dando um passo atrás

Frequentemente, as crises se transformam em bolas de neve que só aumentam com o passar do tempo. Nestes casos, “trocar o pneu com o carro andando” pode não dar certo e a melhor saída é dar um passo atrás.

Veja bem, dar um passo atrás não significa jogar tudo fora e começar do zero. Significa puxar o freio, colocar de lado o objetivo da sprint ou a meta imediata e voltar toda a atenção do time para a crise.

Em alguns momentos, a equipe está desenvolvendo a todo vapor, quando descobre que está na direção errada. Talvez o time não tenha entendido conceitos elementares de negócio ou tenha desconsiderado casos de uso relevantes. Pode ser que tenha descoberto alguma dificuldade técnica impeditiva que force uma grande mudança arquitetural. Ou talvez algum imprevisto externo tenha mudado o cenário do jogo.

Se esse tipo de situação ocorrer, não ignore! Reúna o time com os especialistas, arquitetos e todos que podem contribuir de alguma forma e faça o necessário para entender o problema e identificar os caminhos possíveis. Neste momento, é sempre útil utilizar artefatos - como diagramas - para ajudar a visualizar o problema, encontrar soluções e, principalmente, garantir que todos estejam na mesma página.

Quando o problema tiver sido mapeado e as possíveis soluções delineadas, é a hora da escolha. Esteja preparado para tolerar desperdício e retrabalho, mas fique feliz por saber que eles provavelmente serão bem menores do que seriam caso a decisão tivesse sido adiada. Afinal, quanto mais tempo se caminha na direção errada, mais longa é a estrada de volta.

Indiana Jones e o Salto de Fé

Me lembro do filme “Indiana Jones e a Última Cruzada” (spoiler alert), quando Jones deu um passo em direção ao precipício e descobriu que havia um caminho invisível, pelo qual ele poderia chegar ao outro lado em segurança.

Algumas vezes, após analisar as informações disponíveis sobre a crise, os responsáveis podem tomar a decisão de seguir em frente - seja porque as outras opções são mais assustadoras do que a queda ou porque do outro lado do precipício se encontra uma recompensa grande demais para ser dispensada. É uma decisão arriscada, mas honrada, e, se for consciente e responsável, não deve ser desencorajada.

O ponto chave não é tomar esta ou aquela decisão, já que, em cada situação, a escolha que trará os melhores resultados é desconhecida, até mesmo dos mais experientes. O importante é tomar uma decisão consciente, encarando a realidade e assumindo os riscos.

A decisão não necessariamente deve ser compartilhada, mas todos os envolvidos devem ser ouvidos e tratados com cortesia. Se for desta forma, seja qual for o resultado, as consciências estarão tranquilas e todos saberão que o melhor foi feito com as informações disponíveis.

Não tenha medo de decisões erradas, mas sim de decisões infundadas, cegas, ou da falta de decisão quando uma era necessária. O estrago costuma ser bem maior.

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